25.4.10

Revolução, Precisa-se!

O PREC EM 2008

o deus Silêncio ostenta as Inumeráveis
águas nesta apertada livraria de Lisboa
também ainda o primeiro título (poesia) de Manuel
António Pina em ano de revolução que

nesse tempo eram mesmo
a sério as revoluções e podíamos acrescentar-lhes pela rua
o nosso carme as madrugadas flores

agora um amigo diz-me: “esta
revolução não dá um passo!”

concedo, mas não desisto

incorro em certos delicados actos de guerrilha
por exemplo deixo poemas em cafés ou em pequenas
livrarias que ainda apoiam em segredo esta causa

revolucionária
depois mando as coordenadas sigilosas à amada
que no dia seguinte quase sempre
pela tarde os vai buscar


Miguel-Manso

[in Quando escreve descalça-se, Trama, 2008]

18.4.10

Poetry Rules - Diogo Vaz Pinto

ASTROLÁBIO


Guardei o recibo, que não serve para nada.
Dados impessoais: o nosso subtotal foi de 6.35
— pediste uma água mineral, um café
e uma sandes de ovo (em que nem tocaste);
pagámos caro por estarmos ali os dois,
na cafetaria do aeroporto com uma hora inteira
só para dizer uma palavra. Tudo
processado por computador, IVA incluído.
Uma operação que teve início precisamente
às 04:55 da madrugada. Agora
temos muito tempo para nos contentarmos
por já não termos que disputar as contas,
tu pagas os teus cafés, e eu sem ti
passo bem sem café.


Criatura, n.º 3, Núcleo Autónomo Calíope da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009.

13.4.10

Calvino`s Holiday letter

Uma carta de Calvino (em férias)

Excelentíssima Anna, por aqui os campos, com os seus cereais robustos, continuam a tapar melhor os movimentos sexuais do que os uivos que daí resultam. Trata-se pois de uma discordância evidente entre som e sua origem. E sendo o prazer um excesso acima do mais táctil, é de salientar no entanto a elevação agitada do som que se torna na atmosfera o actor principal, atirando assim - por via do vento - um rubor forte à cara das aldeãs que da janela pensavam ver, mas afinal ouvem.
Devido aos campos férteis que funcionam como cortina, nesses instantes, onde casais jovens se excitam como instrumentos afinados, para um surdo, cara Anna, a janela torna-se subitamente inútil.

( Gonçalo M. Tavares, "O Senhor Calvino" - Caminho)

@quintasdeleitura.blogspot.com

4.4.10

Poetry Rules - Sebastião Alba

a um filho morto


Ontem a comoção foi da espessura dum susto

duma árvore correndo

vertiginosamente para dentro do desastre

E já não choramos. Passamos

sem que o mais acurado apelo

nos decida

Nas camisas

teu monograma desanlaça-se.

Tua mão vê-o nos céus nocturnos

sabe que há uma ígnea

chave algures

Minha tristeza não tem expressão visível

como quando a chuva cessa

sobre a dádiva fugaz do nosso sangue

que hoje embebe a terra

É tal a ordem em nós

que um odor a bafio sai de nossas bocas

e uma teia de aranha interrompe o olhar

que te envolveu em vão.