26.12.10

Porque o amor das coisas no seu tempo futuro é terrivelmente profundo, é suave, devastador.



SÚMULA
Minha cabeça estremece com todo o esquecimento.
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.

Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.

Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.

Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

- Era uma casa - como direi? - absoluta.

Eu jogo, eu juro.
Era uma casinfância.
Sei como era uma casa louca.
Eu metias as mãos na água: adormecia,
relembrava.
Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Apalpo agora o girar das brutais,
líricas rodas da vida.
Há no esquecimento, ou na lembrança
total das coisas,
uma rosa como uma alta cabeça,
um peixe como um movimento
rápido e severo.
Uma rosapeixe dentro da minha ideia
desvairada.
Há copos, garfos inebriados dentro de mim.
- Porque o amor das coisas no seu
tempo futuro
é terrivelmente profundo, é suave,
devastador.

As cadeiras ardiam nos lugares.
Minhas irmãs habitavam ao cimo do movimento
como seres pasmados.
Às vezes riam alto. Teciam-se
em seu escuro terrífico.
A menstruação sonhava podre dentro delas,
à boca da noite.
Cantava muito baixo.
Parecia fluir.
Rodear as mesas, as penumbras fulminadas.
Chovia nas noites terrestres.
Eu quero gritar paralém da loucura terrestre.
- Era húmido, destilado, inspirado.
Havia rigor. Oh, exemplo extremo.
Havia uma essência de oficina.
Uma matéria sensacional no segredo das fruteiras,
com as suas maçãs centrípetas
e as uvas pendidas sobre a maturidade.
Havia a magnólia quente de um gato.
Gato que entrava pelas mãos, ou magnólia
que saía da mão para o rosto
da mãe sombriamente pura.
Ah, mãe louca à volta, sentadamente
completa.
As mãos tocavam por cima do ardor
a carne como um pedaço extasiado.

Era uma casabsoluta - como
direi? - um
sentimento onde algumas pessoas morreriam.
Demência para sorrir elevadamente.
Ter amoras, folhas verdes, espinhos
com pequena treva por todos os cantos.
Nome no espírito como uma rosapeixe.

- Prefiro enlouquecer nos corredores arqueados
agora nas palavras.
Prefiro cantar nas varandas interiores.
Porque havia escadas e mulheres que paravam
minadas de inteligência.
O corpo sem rosáceas, a linguagem
para amar e ruminar.
O leite cantante.

Eu agora mergulho e ascendo como um copo.
Trago para cima essa imagem de água interna.
- Caneta do poema dissolvida no sentido
primacial do poema.
Ou o poema subindo pela caneta,
atravessando seu próprio impulso,
poema regressando.
Tudo se levanta como um cravo,
uma faca levantada.
Tudo morre o seu nome noutro nome.

Poema não saindo do poder da loucura.
Poema como base inconcreta de criação.
Ah, pensar com delicadeza,
imaginar com ferocidade.
Porque eu sou uma vida com furibunda
melancolia,
com furibunda concepção. Com
alguma ironia furibunda.

Sou uma devastação inteligente.
Com malmequeres fabulosos.
Ouro por cima.
A madrugada ou a noite triste tocadas
em trompete. Sou
alguma coisa audível, sensível.
Um movimento.
Cadeira congeminando-se na bacia,
feita o sentar-se.
Ou flores bebendo a jarra.
O silêncio estrutural das flores.
E a mesa por baixo.
A sonhar.

Herberto Helder In «Ou o Poema Contínuo», Assírio & Alvim, 2001

22.12.10

From Poets Corner - Mafalda Gomes

pris vis

o meu amor cai

no vácuo
e eu vou com ele

namorados modernos, eu e o meu amor
afunilamos na medida cósmica do impossível

astros - eu amo
cair na primeira pessoa é mais perigoso do que escrevinhar no metro
a queda voluntária
do poema não compreende
se eu amar

a degeneração começou no primeiro
tropeço e foi uma questão de utilidade
aconchego, uma questão de piso

continuará mais tarde, vertigem
líquida e doida do porvir e faço saber que o verso não terminará jamais porque eu tenho vontade de dizer que um poema é um milagre, um sentimento dentro uma esfera de tinta azul, uma cona molhada, uma pedra que deus não levanta. se em verdade não vos falar, ide, pois, queixar-vos ao imperativo de vos falar verdades que não doam tanto

- tu não me queres

— Porque não tentamos uma coisa diferente hoje, tipo…ter saudades?

experimentei as últimas horas

mãos, flores, um certo frio de flores a despertar, de mãos a nascer, o primeiro sangue do Douro, tudo virgem, o homem por se fazer, todas as mentiras ainda e os segredos, os nomes todos, o teu nome

— Porque não tentamos uma coisa diferente hoje, tipo…ter saudades?

Novembros que apetecem sempre, tu que me apeteces sempre também, tu a pores-te no meu pijama que isso de morrer aos bocadinhos não existe, eu bem sei, e a fazeres-te ainda mais linda, como se isso fosse possível, e eu a apaixonar-me ainda uma vez mais, que isso de morrer aos bocadinhos

— Não sei, a minha alma raramente faz sentido

a chuva lá fora, tão longe que não parece mas passamos a vida inteira nisto e de repente, e nem de repente, passamos mesmo a vida inteira nisto, asas que amortecem quedas asas que deixam e partimos os ossos todos se passamos a vida nisto asas que a cair não sei

mas há uma morte certa para todas as coisas, um dizer

— Custa tanto dizer certas coisas

melhor fingir, amo-te, não vás, para sempre

— Mesmo quando se sente

melhor fingir, e fingir a chuva também, e esquecer os Domingos passados na cama a fazer música com os cobertores, a fazer música com os lençóis, a fazer música ou poesia com os teus dedos, com os nós dos teus dedos, a fazer amor ou poesia

— Sobretudo quando se sente

amo-te não vás para sempre, melhor fingir

que não se sente o que se sente que não se quer sentir o que se sente que se sente outra coisa que existe mais alguma coisa para além de e a chuva também, mas ainda longe

— Sobretudo quando só se sente… Achas que amanhã me podes amar mais um bocadinho?

que os planos existem para isso mesmo, não serem cumpridos, não esse plano, não esse que não pode ser tocado, e ainda me surpreende o facto de aceitares isso com tanta dificuldade

— Foda-se, acho que sou louco por ti

que os planos existem para isso e para conseguir finalmente dizer adeus a quem nunca precisou de partir, e partir

que nunca precisei de saber o que não queres contar ou o que talvez não tenha sido ou o que talvez não sabes

que

não te vou magoar, não te vou deixar sozinha e quando me pedires para te levar para casa sabe

nunca precisarei de saber o que não queres contar

e não espero de ti nada que me possas dar