21.9.10

Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também.

Elogio ao amor

“Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão. Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em “diálogo”. O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam “praticamente” apaixonadas. Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do “tá bem, tudo bem”, tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, bananóides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas. Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental". Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. É uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra. A vida às vezes mata o amor. A “vidinha” é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha – é o nosso amor, o amor que se lhe tem. Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um minuto de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Miguel Esteves Cardoso@Expresso

20.9.10

From Poets Corner - Ahmed Barakat

vou ao mercado
peço-te que me esperes aqui até eu voltar
podes lavar a tua roupa se te sentires aborrecida
e se a porta te perturbar
então arranca-a
e põe qualquer coisa no seu lugar
peço-te que não deixes a tua cara no espelho
e não saias pela janela
não te mates como é teu costume
mas
espera-me
aqui
até
eu voltar

15.9.10

haverá sempre as ruas em que o Porto não existiu

haverá sempre as ruas em que o Porto não existiu

à velocidade com que te ponho nua aqui e reinvento o papel da literatura e da mulher

— e troco toda a poesia por uma vida feita de rotinas de ti

e terás sempre nome, serão sempre para ti os dias, ainda que os pássaros se calem nas persianas que se fecham atrás do mar

— e não volto a dizer amo-te

— já não me dizes amo-te

nas noites em que volto ao entardecer de signos e dedos que se tocam e perpetuam a saudade (até a que não se têm às horas certas do nada) e fazem nascer o grito e gritam o grito que fizeram nascer temerariamente, assim como quem diz: amo-te

digo: amo-te

tão temerariamente como se o grito parisse a noite que se pare sozinha enquanto volto ao entardecer de signos e dedos que se tocam e perpetuam as cinzas da saudade de ver nascer o mundo naquela noite em que mudei o nome de Barcelona, salvei Gaudí, vi Instanbul como veio ao mundo

— e sei que já não me escreves

e continuo sem saber porquê, como se precisasse de saber porque não volto a dizer amo-te, nem Instanbul, nem te mudo o nome que os meus braços serão sempre o teu bunker, ainda que não os queiras na vertigem dos segundos em que persigo o rasto das gaivotas a apagar-se no rasto das memórias de um orgasmo que inventaste para mim enquanto te olho e penso que nunca mais digo amo-te porque a palavra já não significa nada quando se torna menor que o Amor

— e não volto a ser Fevereiro, e tu sabes porquê e não to digo, nem Março, não volto a ser Fevereiro nem Março

— serás sempre Novembro

e também não quero ser Novembro e não volto a ser Fevereiro nem Março nem BarcelonanasruasemqueoPortonãoexistiu

no suor da poesia entre as pernas, versos derrotados por cima das roupas que descobrem dois corpos esgotados pela luz num improvável campo de batalha que revela beijos tatuados por debaixo do céu da pele e que se esquecem no tremor das pernas que confirma o inevitável

— não volto a dizer amo-te…

14.9.10

From Poets Corner - Steve Mccaffery

Poema de Jornal

levante-se e desça as escadas.

apanhe o jornal e folheie imediatamente
a necrologia

se o seu nome não aparecer
volte para a cama.

12.9.10

Suspeito que era disto que falavas...

"Tenho a suspeita de que
a espécie humana – a única –
está prestes a extinguir-se e que a Biblioteca perdurará:
iluminada, solitária, infinita,
perfeitamente imóvel,
armada de volumes preciosos,
inútil, incorruptível, secreta”
Jorge Luís Borges

9.9.10

From Poets Corner - Murilo Mendes

Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.

4.9.10

esta é a nossa maneira de estarmos sós

o que resta quando o que é tudo parece não deixar espaço para mais nada?
se o soubesse encontrar oferecia-te ainda o meu coração...e ontem tinhas razão, são demasiadas as saudades da tua língua...e quando estás por perto nunca sei o que sentir e não se nota e sei que para ti existo insistentemente mas só quando me olhas...estaremos sempre com outros, mas nem por isso deixaremos algum dia de estar juntos. estaremos sempre com outros, mas nem por isso deixaremos algum dia de estar sós.

1.9.10

Administrador - Direito de Resposta

Ao abrigo do direito de resposta previsto no artigo 24º da Lei nº 2/99 –Lei de Imprensa, solicito que sejam publicados, com destaque igual ao conferido ao post relativo ao pretenso "golpe de estado" , o seguinte esclarecimento:
Este blog é e será sempre administrado por Carlos Soares, desde logo porque não se credita qualquer valor a uma administração autopoiética!
Quanto ao mentor do pretenso "golpe", deixo-lhe aqui a burocracia do fim de uma longa amizade (valter hugo mãe, folclore íntimo):


serve para lhe dizer, senhor
a. n., que depois do que
me fez, levei ao lixo cada objecto
que conservava a sua memória e que
eduquei a cabeça a pensar só em
excrementos sempre que por inércia
me quiser aborrecer com lembranças
do que vivi perto de si. que tolice, a
cabeça prega-nos truques, mas com o
presente estará sanado o vício e o
senhor, de vício, passará a ser um
cidadão livre da minha admiração e
cuidado. vai escrito aos dias vinte
de abril de dois mil e sete e vigora
em território nacional e comunitário
por aplicação directa e no resto do
mundo por força dos acordos tácitos
de quem tem vergonha na cara. no mais,
saiba que este poema o obriga a não
chegar à minha pessoa a menos de
vinte mil metros e a não me dirigir
palavra. com vocação para toda a
vida, este poema não é nada comparado
com a traição de que foi capaz. já penso
em excrementos quando escrevo
estes últimos versos e o meu coração
fecha-se naturalmente a toda e qualquer
ternura da sua amizade