26.10.10

From Poets Corner - José Luís Peixoto

«A tua ausência é, em cada momento, a tua ausência.
não esqueço que os teus lábios existem longe de mim.
aqui há casas vazias. há cidades desertas. há lugares.
mas eu lembro que o tempo é outra coisa, e tenho
tanta pena de perder um instante dos teus cabelos.
aqui não há palavras. há a tua ausência. há o medo sem os
teus lábios, sem os teus cabelos. fecho os olhos para te ver
e para não chorar.»

14.10.10

já devias saber que quem ama venceu o mundo

já devias saber que quem ama venceu o mundo

e sempre que te disse amo-te queria mesmo dizer

— Amo-te

e nunca quis dizer outra coisa, amo-te a significar amo-te

e ainda digo

tantas vezes e sempre a significar

— Amo-te,

e nem sempre

mas ainda vejo as tuas cuequinhas espreitarem-me do meio dos meus livros estabelecendo os contornos daquilo a que já chamámos masturbação tântrica, mas só porque não estás aqui, e olho agora para o lugar sem forma que ocupas nesta cama, que desenhámos os dois, quedesenhastetu, e mais o armário dos livros de onde me espreitam as tuas cuequinhas mas só nos melhores dias e nesses dias, nos dias mais felizes, consigo pronunciar o teu nome e és real e o nevoeiro não me toca e o tempo não existe para além da ilusão de que o tempo existe fora deste quarto, para além deste papel, para além do olhar que me deitam as tuas cuequinhas

— Encontrámo-nos muito cedo

— Encontrámo-nos demasiado tarde

já o dia 14.03.1963 tinha sido do Ian e da Debbie, já o teu pai tinha feito um filho à tua mãe sem sequer a beijar, já Romeu tinha morrido a primeira vez pela Julieta

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos para sempre mas encontrámo-nos muito cedo

e conheço uma Julieta por quem nenhum Romeu morreria

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos

e conheço uma Julieta por quem nenhum Romeu morreria e sei que nos encontrámos demasiado tarde mas o tempo não existe para além da ilusão de que o tempo existe, e não está errado, e sei que seremos para sempre

e não fomos

que tudo acaba na vertigem que é o tempo que não existe mas que tudo faz acabar e recomeçar e por isso não existe e por isso talvez sejamos mesmo para sempre

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos

e não fomos e talvez por isso sejamos

— Era o nosso destino

— Não há destino

— É o nosso destino e sei que tens sentido a minha falta

— Cala-te

e nem imaginas o quanto e é claro que há destino e é claro há lugares marcados e é claro que se vai vivendo e morrendo o que sempre esteve escrito

ou coisa nenhuma

que acaba por ser tudo coisa nenhuma e sempre te digo mais uma vez

vai-se vivendo e morrendo o que sempre esteve escrito

— Será sempre o nosso destino

— Amo-te Cala-te Desaparece

e nos dias mais felizes juro que consigo pronunciar o teu nome e és real e estás aqui e nem ponta de nevoeiro e o tempo a sumir-se por debaixo da porta

— Amo-te Cala-te Desaparece

e nesses dias ainda consigo ouvir o barulho do chá a arrefecer enquanto afasto o teu seio, e a sensação de que também isto já se encontra escrito em algum lado, ou aconteceu mesmo, e procuro cada letra cada ponto apagado no teu corpo, nos teus pés nas tuas unhas no fundo das costas cada ponto apagado, procuro em ti o que não se vê o que está para além da cor da morte, o que é vida sem ti

— Viveres uma vida sem mim, já imaginaste?

— Amo-teCala-teDesaparece, por favor

e sabes bem que não se imagina uma vida sem ti e é claro que sinto a tua falta ou quero crer que sinto a tua falta ou sinto mesmo e quero crer que sinto mesmo a tua falta ou coisa nenhuma que o vazio já cá estava, já me pertencia por completo, o vazio já cá estava

e juro que nos dias mais felizes ainda posso ouvir o chá a arrefecer e o barulho do gato

— Nunca tivemos gato

e o barulho do gato a roçar-se pelas paredes a encher tudo de pêlos, o focinho sempre húmido, a fazer amor com os bonecos largados no chão por não sei quem

— Nunca tivemos gato nem bonecos nem houve não sei quem, só nós

— Eu sei, só nós

e o gato e não sei quem que insistia em largar bonecos por todo lado

— Só nós, tu e eu, o sonho perfeito do mundo

— Amo-teCala-teDesaparece, por favor

e somos mesmo,

o sonho perfeito do mundo,

e sempre tiveste um jeito muito especial de dizer as coisas, dizer a vida toda mais os planetas que existem e não existem como se dissesses: ´saí, fui comprar costeletas, tu a seres Basquiat, tu e essa mania de dizeres a vida toda e seres tudo

— Quem é Basquiat?

e sempre tiveste um jeito muito especial de dizer as coisas, dizer a vida toda mais os planetas que existem e não existem como se dissesses: ´saí, fui comprar costeletas, tu a seres Basquiat, tu e essa mania de dizeres a vida toda e seres tudo

— Basquiat Costeletas?

somos o sonho perfeito do mundo

e fizemos Deus descansar do seu destino e prendemos a eternidade naquela troca de olhares

— Não há tempo, lembras-te?

e não há mesmo para além da ilusão de haver

e se não há tempo o tempo é tudo e se é tudo não acaba nem começa para além do instante em que acaba e começa, o mesmo instante, e por isso somos o sonho perfeito do mundo concretizado e a concretizar depois de concretizado, assim como o tempo, vertigem circular

fizemos Deus descansar do seu destino

— Dá-me a tua mão

e fizemos Deus descansar do seu ofício, e sei lá se ao sétimo dia e que interessa isso se não existe tempo para além do que é eterno,

e seremos sempre o sonho perfeito do mundo

— Olha-me e dá-me a tua mão: achas que poderias deixar de aparecer assim?

8.10.10

From Poets Corner - Raul de Carvalho

Coração Sem Imagens

Deito fora as imagens.

Sem ti, para que me servem
as imagens?


Preciso habituar-me
a substituir-te pelo vento,
que está em qualquer parte
e cuja direcção
é igualmente passageira
e verídica.


Preciso habituar-me ao eco dos teus passos
numa casa deserta,
ao trémulo vigor de todos os teus gestos
invisíveis,
à canção que tu cantas e que mais ninguém ouve
a não ser eu.


Serei feliz sem as imagens.
As imagens não dão
felicidade a ninguém.


Era mais difícil perder-te,
e, no entanto, perdi-te.


Era mais difícil inventar-te,
e eu te inventei.


Posso passar sem as imagens
assim como posso
passar sem ti.


E hei-de ser feliz ainda que
isso não seja ser feliz.

6.10.10

e como se escreve o amor?

e as coisas têm que ser vividas quando têm de ser vividas

12:37

e como se escreve o amor?

que se tem e não se tem, e podia escrever aqui o teu nome sem saber e

as coisas têm que ser vividas quando têm de ser vividas,

mais o divino labirinto das causas e dos efeitos Borges e tu não devias ter entrado aqui tão depressa,

e as causas de efeito nenhum,

que a vida perfeita chega-nos de tantas maneiras mas quase sempre ao entardecer, e não há razão,

12:37,

e qual é o efeito?

e como se escreve o nome da tua rua que trago na ponta da língua que falamos nos dedos?

— Toca-me!

oferece-me a magia que a noite não sabe ter

— Toma lá a chave!

e como se diz o que não se diz? e ficará dito?

— Canta-me aquela canção que só é perfeita no teu tom desafinado!

e como se escreve o destino e se diz eu tu nós? como se escreve o destino e se diz eutunós?

e sei que não há passado…tudo tem que ser vivido quando têm de ser vivido, não há passado e não ausentes, nem memória, só tu

e como se escreve o que se sente mesmo sabendo que é real? e como se diz?

resta já tão pouca vida em Paris,

12:37,

resta já tão pouco do nosso viver em Paris Adelaide Nairobi Deli,

será que já alguém to disse?

resta já tão pouca Paris Adelaide Nairobi Deli,

e apeteceu-me escrever aqui o teu nome, era-me fácil, mais fácil do que

menti-te!

menti-te

em relação à 5.ª dimensão, 12:37,

é diferente a relação espaço-tempo que se estabelece no meu coração, não obedece a leis, e eu também converso com anjos nas ruas de Londres, 12:37, Swedenborg, e escrevi Swedenborg para não escrever o teu nome e tu sabes

— Será que amanhã ainda me vais amar?

— Não me lembro

é como se escreve o tempo que faz no meu coração,

mas ontem estive parado em frente ao teu mar, eram precisamente 12:37, sei-o porque pensei em ti, ontem estive parado em frente ao teu mar,

tantas coisas que continuam a ser só tuas,

12:37, e pensei em ti

12:37, sei-o porque todos os dias às 12:37 não tenho outro lugar para estar,

Casablanca,

11:37 em frente ao teu mar,

Lhasa,

19:37 e não tenho outro lugar para estar

Buenos Aires,

06:37 não há outro lugar

— Claro que posso repetir Buenos Aires,

e Borges abre a porta da Biblioteca Nacional e faz-me entrar no poema, não para falar com anjos nas ruas de Londres, 06:37, e Borges abre-me a porta da Biblioteca Nacional e faz-me entrar no poema para me colocar onde sempre estou parado e não fico

quando entro na voz de Chico, e sei que na fotografia estamos felizes, Rio de Janeiro e não sei que horas são precisamente, e me perco no interior da minha saudade enquanto te espero como nunca, como amanhã

e somos tão pequeninos outra vez e sabemos tudo e tudo por acontecer

1.10.10

From Poets Corner - Sylvia Beirute

Significar Para Existir

quero tentar de novo.
porque nada conseguiu
lograr o que é.
porque este poema não começa
com a palavra não.
porque o necessário pesa
quando representa
e ainda organiza a tua surpresa
num contrário hospitaleiro
de um esconderijo breve.
quero tentar novo. mesmo que
para isso infra-existamos ao
encontrar os pés num nós
desaparecido, ao cortar o ar
com uma dor aguda e adiada.
porque te amo. tanto.
e porque te amo quero tentar de novo.
agora e antes
que alguma palavra comece.