14.10.10

já devias saber que quem ama venceu o mundo

já devias saber que quem ama venceu o mundo

e sempre que te disse amo-te queria mesmo dizer

— Amo-te

e nunca quis dizer outra coisa, amo-te a significar amo-te

e ainda digo

tantas vezes e sempre a significar

— Amo-te,

e nem sempre

mas ainda vejo as tuas cuequinhas espreitarem-me do meio dos meus livros estabelecendo os contornos daquilo a que já chamámos masturbação tântrica, mas só porque não estás aqui, e olho agora para o lugar sem forma que ocupas nesta cama, que desenhámos os dois, quedesenhastetu, e mais o armário dos livros de onde me espreitam as tuas cuequinhas mas só nos melhores dias e nesses dias, nos dias mais felizes, consigo pronunciar o teu nome e és real e o nevoeiro não me toca e o tempo não existe para além da ilusão de que o tempo existe fora deste quarto, para além deste papel, para além do olhar que me deitam as tuas cuequinhas

— Encontrámo-nos muito cedo

— Encontrámo-nos demasiado tarde

já o dia 14.03.1963 tinha sido do Ian e da Debbie, já o teu pai tinha feito um filho à tua mãe sem sequer a beijar, já Romeu tinha morrido a primeira vez pela Julieta

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos para sempre mas encontrámo-nos muito cedo

e conheço uma Julieta por quem nenhum Romeu morreria

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos

e conheço uma Julieta por quem nenhum Romeu morreria e sei que nos encontrámos demasiado tarde mas o tempo não existe para além da ilusão de que o tempo existe, e não está errado, e sei que seremos para sempre

e não fomos

que tudo acaba na vertigem que é o tempo que não existe mas que tudo faz acabar e recomeçar e por isso não existe e por isso talvez sejamos mesmo para sempre

— A minha alma derrama-se no teu corpo e sei que seremos

e não fomos e talvez por isso sejamos

— Era o nosso destino

— Não há destino

— É o nosso destino e sei que tens sentido a minha falta

— Cala-te

e nem imaginas o quanto e é claro que há destino e é claro há lugares marcados e é claro que se vai vivendo e morrendo o que sempre esteve escrito

ou coisa nenhuma

que acaba por ser tudo coisa nenhuma e sempre te digo mais uma vez

vai-se vivendo e morrendo o que sempre esteve escrito

— Será sempre o nosso destino

— Amo-te Cala-te Desaparece

e nos dias mais felizes juro que consigo pronunciar o teu nome e és real e estás aqui e nem ponta de nevoeiro e o tempo a sumir-se por debaixo da porta

— Amo-te Cala-te Desaparece

e nesses dias ainda consigo ouvir o barulho do chá a arrefecer enquanto afasto o teu seio, e a sensação de que também isto já se encontra escrito em algum lado, ou aconteceu mesmo, e procuro cada letra cada ponto apagado no teu corpo, nos teus pés nas tuas unhas no fundo das costas cada ponto apagado, procuro em ti o que não se vê o que está para além da cor da morte, o que é vida sem ti

— Viveres uma vida sem mim, já imaginaste?

— Amo-teCala-teDesaparece, por favor

e sabes bem que não se imagina uma vida sem ti e é claro que sinto a tua falta ou quero crer que sinto a tua falta ou sinto mesmo e quero crer que sinto mesmo a tua falta ou coisa nenhuma que o vazio já cá estava, já me pertencia por completo, o vazio já cá estava

e juro que nos dias mais felizes ainda posso ouvir o chá a arrefecer e o barulho do gato

— Nunca tivemos gato

e o barulho do gato a roçar-se pelas paredes a encher tudo de pêlos, o focinho sempre húmido, a fazer amor com os bonecos largados no chão por não sei quem

— Nunca tivemos gato nem bonecos nem houve não sei quem, só nós

— Eu sei, só nós

e o gato e não sei quem que insistia em largar bonecos por todo lado

— Só nós, tu e eu, o sonho perfeito do mundo

— Amo-teCala-teDesaparece, por favor

e somos mesmo,

o sonho perfeito do mundo,

e sempre tiveste um jeito muito especial de dizer as coisas, dizer a vida toda mais os planetas que existem e não existem como se dissesses: ´saí, fui comprar costeletas, tu a seres Basquiat, tu e essa mania de dizeres a vida toda e seres tudo

— Quem é Basquiat?

e sempre tiveste um jeito muito especial de dizer as coisas, dizer a vida toda mais os planetas que existem e não existem como se dissesses: ´saí, fui comprar costeletas, tu a seres Basquiat, tu e essa mania de dizeres a vida toda e seres tudo

— Basquiat Costeletas?

somos o sonho perfeito do mundo

e fizemos Deus descansar do seu destino e prendemos a eternidade naquela troca de olhares

— Não há tempo, lembras-te?

e não há mesmo para além da ilusão de haver

e se não há tempo o tempo é tudo e se é tudo não acaba nem começa para além do instante em que acaba e começa, o mesmo instante, e por isso somos o sonho perfeito do mundo concretizado e a concretizar depois de concretizado, assim como o tempo, vertigem circular

fizemos Deus descansar do seu destino

— Dá-me a tua mão

e fizemos Deus descansar do seu ofício, e sei lá se ao sétimo dia e que interessa isso se não existe tempo para além do que é eterno,

e seremos sempre o sonho perfeito do mundo

— Olha-me e dá-me a tua mão: achas que poderias deixar de aparecer assim?

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