29.3.10

O Ofício de Ser-Poeta

«breve programa para uma iniciação ao canto»
O poeta deve surpreender-se e surpreender, recusar-se como instituição, fugir da integração, da reforma que até mesmo pessoas e grupos aparentemente progressivos lhe começam subtilmente a tentar impor o mais tardar aos trinta anos. Abaixo o oportunismo, a demagogia, seja a que pretexto for. O poeta deve desconfiar dos aplausos, do êxito e até passar a abominar o que escreveu logo depois de o ter escrito. (...)

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. Alguém se encarregará de institucionalizar o escritor, desde os amigos, os conterrâneos, os companheiros de luta, até todas aquelas pessoas ou coisas que abominou e combateu. Acabarão por lhe encontrar coerência, evolução harmoniosa, enquadramento numa tradição. Servir-se-ão dele, utilizá-lo-ão, homenageá-lo-ão. Sabem que assim o conseguirão calar, amordaçar, reduzir.

É claro que falo do peta e não do poetastro, do industrial e comerciante de poemas, do promotor da venda das palavras que proferiu. Falo do homem que nunca repousou sobre o que escreveu, que se recusou a servir-se a si e a servir, que constantemenete se sublevou. (...)

Ruy Belo, Todos os Poemas II, Assírio&Alvim, 2ª edição, 2004

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21.3.10

Diz que é uma espécie de Dia Mundial da Poesia - III

Explicação da Eternidade

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto

Diz que é uma espécie de Dia Mundial da Poesia - II

Comecei a fumar para te pedir lume.
Para arranjar um motivo. Para.
Tens lume? Perguntei-te.
Sim. Disseste. Levaste a mão ao bolso.
Engatilhaste o zippo. Todo prateado.
Abeiraste-te e fizeste concha com a mão direita.
Eras canhoto, como o coração.
Agora. Disseste.
E levei o cigarro até à chama.
Já está. E sorriste.
Importas-te que te acompanhe? Perguntaste.
Não, claro que não. Claro que não.
Está frio. Disseste. E esfregaste as mãos.
O cigarro sempre aquece.
Sim. Tossi.
Estás bem? Perguntaste.
Estou muito bem.
Óptimo. Disseste. E sorriste.
Aquele café além é acolhedor. Não tomas nada?
Um chá fazia bem à tosse. Perguntaste. E disseste.
Sim, um chá calhava bem. Estava mesmo a apetecer-me.
Parece que adivinhei. Disseste. E aí sorri eu.
Tomámos chá e de imediato fizemos planos de vida
Que correram mal, imediatamente mal.

Comecei a fumar para te pedir lume.
Para passar o frio.
Descobri que não viria a morrer
Nem de cancro pulmonar, nem de amor,
mas da própria morte, mal o lume se apagou
e o café fechou as portas. Para sempre.

Ana Salomé



20.3.10

Diz que é uma espécie de Dia Mundial da Poesia - I

Primavera Primeira

estremeço desde o princípio do meu rosto
desde o momento em que sorri e me sorriram
e é nesse lugar ínfimo que suspendo todas as palavras
que fecho os olhos e sinto a frescura de todas as águas
o oceano que cessa e atende o esvoaçar da primavera

é a primavera de todos os outonos
é aqui que em silêncio se bordam os calendários
dias entre dias e sobre dias e as memórias que escapam
e não mais se alcançam se não nos tornamos menores
- no futuro não há esquecimento nem segredos
cada coração guarda apenas o que for mais comum
[Vasco Gato, Um mover de mão, col. peninsulares/literatura/63, Assírio & Alvim, 2000]

E ´Hoje começa a Primavera.`

18.3.10

Poetry Rules - Xavier

uma rosa que se apaga
ver-te adormecer
a persiana que filtra a luz da lua mas deixa passar o perfume que têm as coisas
a escuridão que se transcende em palavras mortas
a cada traço um novo horizonte se semeia no vento

como a cidade está só
como a cidade se afunda nos teus braços

este quarto é um retrato vazio numa imensa sala branca

está frio agora
já não me apetece dançar

como a cidade se apaga na dor
como está só aquela rosa

e sentir a minha vocação na seda esquecida dos teus dedos

cidade só
cidade de olhar vago gesto
corpo vazio
de corações nascidos no alinhamento gasto das tuas calçadas

o silêncio agora é puro

ontem não me apeteceu dançar

não há universo poéticos
tudo é dor mal compreendida

foste minha outra vez


amanhã escrevo um poema



8 III 2010

15.3.10

Carta de um Poeta para uma Donzela do Séc. XV

Isto é uma confissão, uma radiografia...aqui me tens, e se quiseres saber o que eu realmente sinto por ti só tens que chegar ao fim destas linhas (que não são poucas). Se não quiseres saber a solução é ainda mais simples:pára aqui e lixo com estas letras! Vou tentar pôr tudo da forma mais simples, sem preocupações técnicas ou linguísticas, o tempo para impressionar já lá vai, o objectivo é só o de apresentar o homem, sem máscaras, nu...
Graças (...) não poderás ver, nem sentir talvez, a minha mão a tremer, como treme a mão de um miúdo que apaixonado pela primeira vez não sabe o que fazer. Também eu não estou bem certo do que fazer, por isso estas linhas, na ilusão da bondade do poeta:"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir".
O que sinto por ti é grande, muito maior do que gostaria, pelo menos neste momento...Não sei se é amor, nem sei se o amor se pode pôr em palavras, nem sei se há amor sem ser recíproco...mas sei que é bem forte...tão intenso...Não é simples atracção, e nada do que sinto exagero, quando muito minimizo (sempre o peso da razão!). Fui claramente ultrapassado pelo meus sentimentos. Se eu me colocaria voluntariamente nesta posição, gostar assim de ti sem saber o que tu sentes? A resposta nunca poderia ser positiva. Para além de tudo, não nos conhecemos assim há tanto tempo, nem tão bem...o que em vez de menorizar só agrava o meu drama interior. De onde me vem tudo isto então? Não sei de onde vem (nem para onde vai), mas sei o que se passa cá dentro quando estamos juntos e, sobretudo,sei o que se passa quando não estamos (e continuas presente). Não sei se quando estou contigo a minha felicidade é visível, mas sendo-o é infinitamente menor à que sinto. E se não estamos juntos o meu primeiro pensamento é: quando é que a vou voltar a encontrar no caminho. Penso em ti e quero estar contigo, e é mais forte que eu.
É verdade, o primeiro "impacto" contigo é sempre positivamente traumático: és muito mais do que o exteriorizas. O teu "invólucro" (que palavra, perdoa) fica muito aquém, e ainda assim é o que é! És diferente, linda e inteligente (combinação tão fatal)...agora já sei a resposta à pergunta que te coloquei algumas vezes: o que é tu fazes aos homens?, a resposta não podia ser mais simples:nada...existes...és especial e és única. Tens razões para não trocar esse sorriso (a tua alma, dizes...pelo menos espelho ou janela para a alma) por nada, quem trocaria um sorriso que talvez, só, tenha inspirado todos os poetas de todos os tempos! E esse olhar (também aqui as palavras são poucas mas nunca seriam demais) que tantas vezes tentei capturar para mim, guardá-lo bem no fundo do meu ser, num daqueles locais onde, mesmo com chave, ninguém pode entrar...
Isto é o que representas para mim...não sei se é muito ou pouco, sei que é muito mais do que eu gostaria: porque não sei o que sentes por mim e, sobretudo, porque sei que as mulheres como tudo são as mais difíceis de esquecer, são sempre necessária muitas mulheres para se esquecer uma mulher inteligente, já o disse um qualquer génio.
Na verdade, gostaria que gostasses assim de mim...se não for nesta vida espero por outra, temo muito que ainda assim fico a ganhar.

Carta Anónima (Revista Para Português Moderno)

11.3.10

Poetry Rules - Cruzeiro Seixas

Faças o que fizeres
já nada faz o tempo parar de espanto
de curiosidade
de comoção
de ódio ou de amor
diante do simples movimento antigo
de colher uma flor.

O tempo foge de nós
meu amor.

Áfricas, 56

5.3.10

Poetry Rules- Al Berto

RECADO

ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte

vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

1.3.10

Poetry Rules - Miguel-Manso

O PREC EM 2008

o deus Silêncio ostenta as Inumeráveis
águas nesta apertada livraria de Lisboa
também ainda o primeiro título (poesia) de Manuel
António Pina em ano de revolução que

nesse tempo eram mesmo
a sério as revoluções e podíamos acrescentar-lhes pela rua
o nosso carme as madrugadas flores

agora um amigo diz-me: “esta
revolução não dá um passo!”

concedo, mas não desisto

incorro em certos delicados actos de guerrilha
por exemplo deixo poemas em cafés ou em pequenas
livrarias que ainda apoiam em segredo esta causa

revolucionária
depois mando as coordenadas sigilosas à amada
que no dia seguinte quase sempre
pela tarde os vai buscar

[@ Quando escreve descalça-se, Trama, 2008]

Tabacaria - Festival do Silêncio




A DIZER Viriato Ventura