14.5.09

Intervenção Literária - O Estrangeiro, A. Camus

"Tomo o autocarro das duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma razão destas, ele não mos podia recusar. Mas não estava com um ar muito satisfeito. Cheguei mesmo a dizer-lhe: A culpa não é minha."

" Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de facto queria casar, estava bem. Quis saber se eu a amava. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que talvez a não amasse."

"À saída do tribunal e ao subir para o autocarro reconheci, durante breves instantes, o cheiro e o calor das tardes de Verão. Na obscuridade da minha prisão rolante reencontrei, um a um, no fundo do meu cansaço, todos os ruídos familiares de uma cidade que eu amava e de uma certa hora em que tantas vezes me sentira contente (...) Sim, era a hora em que, há muito, muito tempo, eu me sentia contente. O que então me aguardava era sempre um sono ligeiro e sem sonhos. E, no entanto, alguma coisa se modificara, pois, com a expectativa do dia seguinte, foi a minha cela que reencontrei enfim. Como se os caminhos familiares, traçados nas noites de Verão, pudessem conduzir tanto às prisões como aos sonos inocentes."

A primeira vez que li "O Estrangeiro" confesso que não fiquei deslumbrado, como todos aqueles que me empurraram para a sua leitura e outros ainda com quem falei acerca do livro. Achei o estilo demasiado simples, não achei a história, ou estória, especialmente viciante...enfim, não sou crítico literário, nem quero passar por entendido, para estar aqui a dizer se estamos perante uma obra de inegável valor e importância, mas a verdade é que não gostei por aí além. Depois de falar com uma amiga (Sandrinha ou D. Sandra, para os mais chegados) parti para uma nova leitura. A verdade é que gostei mais do livro, mas não gostei assim tanto, tem bons momentos mas a impressão inicial não se desvaneceu. Mas depois de muito reflectir (na verdade não reflecti assim tanto) a verdade é que cheguei a uma conclusão: não gostei do assim tanto do livro porque sou jurista! Explicitando: todas as pessoas com quem falei acabam o livro a pensar que Mersault foi condenado por ter ido ao cinema, por se envolver com uma mulher no dia a seguir ao enterro da mãe, mas não, ele foi condenado por ter cometido um homicídio sem razão aparente! Ele teve um julgamento justo, sabia do que era acusado e confessou, em suma, um processo nada Kafkiano em que se fez justiça. Mas a verdade é que, aqueles com quem falei, acham que ele foi injustiçado, que foi condenado não por ter assassinado o árabe mas por não ter chorado no funeral da mãe, por não saber ao certo a sua idade (pela referida ida ao cinema e envolvimento amoroso), puro engano, esses foram os argumentos que o Procurador do Ministério Público utilizou para conseguir a condenação, numa atitude muito contemporânea (condenável dirão uns), mas ele acabou por ser punido por ter lesado o bem jurídico mais sensível à luz do direito: a vida (de outrem). E talvez resida aqui o maior mérito de Camus: fazer com que Mersault passe de assassino a injustiçado!

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