15.11.10

não faz mal sentir, sabes?

não faz sentido a memória, só a urgência, a compulsão, a vontade de provar a morte

— Porquê?

e há coisas que não têm explicação mas sempre te posso dizer que ela estava ali e eu também

— És um filho da puta

e eu escrevo contra o filho da puta que sou

— És um filho da puta

e não precisas de mo repetir que eu escrevo contra o filho da puta que se és isto escrever escrevo contra o filho da puta que sou e na verdade nunca pensei que soasse assim na tua boca filho da puta a soar filho da puta ou fora da minha vida ou és uma doença acabou a canção (acabou a canção?)

e isto não pode ser o final da canção isto que é para mim uma espécie de final feliz

— És um filho da puta e eu quero-te fora da minha vida

e isto não pode ser o final da canção isto que é para mim uma espécie de final feliz

acabou a canção

assim, sem lágrimas, sem sentenças de morte, sem devolve-me os anos que perdi em ti nem cinema, um qualquer gesto que dê ao drama a carga de drama, lágrimas a reinventar memórias,

nem devolve-me os anos que perdi em ti

só esta espécie de final feliz, porta fora, a ponta de um corno é o que me importa a tua felicidade, o teu destino ou lá como lhe chamam a querer significar sei lá o quê

e nem súplicas lágrimas delírios e nem súplicas juras lágrimas unhas na carne e nos colarinhos e nem tu crucificada na porta a impedir-me de sair juras e nem

— Quem é ela?

nada, e nada que se assemelhe a uma alma e talvez um coração no lugar de com que pudesses sentir esse filho da puta que lanças porta fora (boca?) como um encantamento e nem

— Quem é ela?

nada que pudesse indicar que podes sentir, consegues sentir, sabes sentir

tu quase humana, a poder sentir, conseguir sentir, saber sentir a compulsão que não faz sentido a memória, só a urgência, a compulsão, a vontade de ser a morte

e ainda que não perguntes

— Quem é ela?

eu respondo-te que não existiu, só a vontade de ser morte, e nem a compulsão só a vontade de ser a morte, a Eternidade com maiúscula, e ainda que não perguntes eu respondo-te que não existiu como não exististe tu, e nenhuma indignação da tua parte nenhum

— Vai-te foder

por te saberes inexistente, todas inexistentes

e nem

— Vais escrever sobre nós?

a que eu pudesse responder e como se escreve sobre o que não existiu se é escrever isto que eu faço para além de partir pedra em busca de

— Vais escrever sobre nós?

para além partir pedra em busca de que a pedra acabe e desfazer as dúvidas todas, as que existem e as que existirão depois das que existem, dúvidas, pedras, pó, não das pedras, não percebo como apareceu aqui este pó, acudir à morte, manter-me à tona, no limiar acudir à morte dizendo a vida tal como ela é, vida, só, acudir à vida através do espelho da morte que ela é e nem

— Ontem quando me fodeste disseste que me amavas

e disse mesmo e se disse é porque é verdade, não te sei mentir, nunca soube, antecipadamente culpado, e se calhar escrever-te quando queria mentir tinha dado melhor resultado, escrever-te e escrever-me até fazer pó dos dedos, não das pedras, pó das palavras, pó das letras, o sangue em pó, o pó em pó, morar num barco, e percebo agora como apareceu em cima o pó, sim morar num barco, o pó em pó, distante o barco em pó também e tu nem crucificada à frente da porta

— e se eu fizer uma transfusão de sangue será que deixas de correr nas minhas veias?

e se tu quisesses teria vivido só para ti, cerejeiras de Neruda no coração pássaros a nascer do eco, barcos onde se mora e nem pó navega, Janeiro numa só hora a vida toda, e nenhuma memória, nenhuma urgência, nenhuma compulsão, nenhuma vontade de ser

que se quisesses teria vivido só para ti, se quisesses mesmo com muita força, como só se quer um filho num vão de escada, numa taberna, na beira de nenhuma estrada que leva a Mia, e teria sido quase feliz, poderia dizer a palavra

e tu nem crucificada à frente da porta

— Pedi tanto a Deus

sem saber que a esse nada se pede, esquece-se Dele e quando Dele precisamos exige-se e tu sem saber

todos os dias escreverei para ti

não faz mal sentir, sabes?

2 comentários:

Mafalda Sofia Gomes disse...

uma vénia profunda

Carlos Soares disse...

estou vivo, logo agradeço a vénia...embora lhe desconheça o sentido!